quarta-feira, dezembro 17, 2008

Declaração e Igreja

Para celebrar os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Rede Evangélica Nacional de Ação Social (Renas-Rio) e o Instituto de Estudos da Religião (ISER) realizaram um Encontro de Reflexão e Compromisso, com o tema Direitos Humanos e Missão da Igreja. O evento aconteceu no centenário Instituto Central do Povo (ICP), na região central do Rio, e contou com a presença do secretário executivo do ISER, especialista-militante em direitos humanos, Pedro Strozemberg, e o pastor presbiteriano e antropólogo, André Melo.

A cerimônia que reuniu 50 pessoas, entre militantes e religiosos, colocou em discussão as similaridades encontradas entre os 30 artigos escritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e os Dez Mandamentos contidos na Bíblia. Segundo Clemir Fernandes, um dos organizadores e moderador do encontro, em ambos os documentos, os temas fundamentais que procuram reconhecer e defender a dignidade da vida, a justiça, liberdade plena e a diversidade são fortemente tratados e ratificados.

O primeiro, criado a partir do enfretamento humano de altos índices de mortandade ocorridos no século XX, e o segundo, presente e consolidado na sociedade ainda na antiguidade, também com forte ênfase na defesa da manutenção da vida humana.

Em seu discurso o pastor André Melo chamou a atenção para a necessidade de uma Declaração Universal, cujo objetivo seja reafirmar atitudes que deveriam ser espontâneas, como o respeito e o direito a vida dos homens. “Eu preferia que a Declaração não existisse. Se existe um papel, pontuando o que precisa ser feito ou não, significa que as coisas não vêm sendo feitas naturalmente”.

Para ele, reforçar os ensinamentos de Cristo e dos direitos, aprovados na lei, para que as pessoas mudem sua postura perante aos outros irmãos é triste e um retrocesso na humanidade.

No entanto, esse documento para o Brasil tem uma importância ainda maior, quando se avalia a condição histórica de desrespeito dos direitos humanos vivida aqui, explica Pedro Strozemberg. “Ele alimenta nossa esperança e utopia de viver numa sociedade capaz de garantir um lar digno, trabalho, segurança e saúde, afinal somos seres carentes desses direitos básicos”.

Pedro também observa que a lógica dos direitos humanos vem avançando com o tempo: primeiro com os direitos civis, seguidos dos jurídicos, os sociais e, agora, os direitos econômicos sociais culturais. Mas ainda de forma muito limitada. Segundo ele, falta ao Estado assumir a postura de regulador: “Não um regulador autoritário, e sim de princípio democrático, com valores que inclua a dignidade humana. Para isso, cabe ao Estado garantir os direitos humanos e à sociedade em respeitar as diferenças”.

Para destacar a importância do papel das igrejas nesse contexto, Pedro lamentou a posição de algumas instituições cristãs de não compartilharem os problemas da sociedade.

O mesmo desconforto foi salientado pelo Pastor André Melo: “É notório como muitas igrejas trabalharam contra a Declaração, com o argumento de ser algo modernista. Outras, como as evangélicas, acreditam ser dever do Estado e não se sentem na responsabilidade de discutir o assunto. Menos ainda de promover ações”.

“Eu até concordo que na Bíblia não encontraremos diretamente o termo “Direitos humanos”, mas iremos encontrar princípios que dão base aos direitos humanos, como solidariedade, respeito, igualdade, entre outros. Nós iremos perceber, inclusive, uma passagem ausente na Declaração, na qual os profetas dizem para denunciar toda e qualquer forma de opressão”. Por isso, Melo adverte que não basta organizarem mutirões de orações. É preciso ter uma prática cristã.

Ainda durante o encontro, jovens universitários, do Movimento FALE, declamaram trechos do documento aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, alternando com a memória de pessoas que foram impedidas do direito à vida, seja em casos isolados ou não. Entre eles as chacinas correntes acontecidas no Estado do Rio de Janeiro: Candelária, Vigário Geral, Duque de Caxias, Queimados e Nova Iguaçu, além das perseguições ocorridas na ditadura militar. Também mencionaram personalidades, religiosas ou não, que lutaram pelo respeito à vida como Herbert de Souza, Dom Hélder Câmara, Rev. Jaime Wright, Pr. Darci Dusilek, Dorothy Stang e outros.

O espaço da cerimônia foi escolhido especialmente por causa de sua localização na área do complexo do Morro da Providência, onde foram assassinados, após tortura, os três rapazes entregues por agentes do Estado a supostos traficantes de drogas, em junho de 2008.

Com uma saudação feita pelo sr. Mário Way, do ICP e das boas vindas em nome da Renas, feita pela coordenadora Sara Chagas, teve início o encontro, seguido da apresentação da missionária Ivani Mendes de Souza, da 1ª Igreja Batista de Ipanema, que deu um depoimento emocionante da sua vida no mundo do tráfico: o que a levou por esse caminho e como conseguiu sair dessa vida, através da igreja. Hoje, ela é referência na comunidade do Cantagalo, trabalha com mulheres da unidade prisional Muniz Sodré e na 53ªDP em Mesquita, RJ.

O encontro foi ainda entremeado com canções evangélicas, de cunho social, apresentadas pelo músico batista Ed Wilson. Ao final, a pastora metodista Kaká Omowale conduziu uma breve liturgia religiosa em memória de pessoas vitimadas pela violência e de personalidades que se dedicaram na busca pela dignidade humana. Essa articulação do conteúdo da Declaração Universal e os postulados bíblicos de defesa da vida visam ações de luta por justiça e valorização da existência humana, numa sociedade como a brasileira, marcada diariamente pela morte sem pena.

Confraternização, esperança e compromisso são palavras que traduzem bem o encerramento do encontro, que foi animado por um delicioso lanche, onde se destacaram os pães e bolos, feitos na própria padaria comunitária do Instituto Central do Povo.  

quinta-feira, novembro 27, 2008

segunda-feira, maio 05, 2008

Teologia quer dialogar com a Cultura

Antonio Carlos Ribeiro*

Criar canais de diálogo com a cultura contemporânea a partir do
trinômio Fé-Ciência-Transdisciplinaridade. Este é o tema do I Simpósio
Internacional de Teologia (PUC-Rio) - desafios e horizontes para a
Teologia no diálogo com a cultura contemporânea, realizado na
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, de 1 a 3 de abril.
A escolha do tema se deve à crise de sentido que afeta as dimensões da
vida humana e surgiu do ambiente no qual o aparato de natureza
filosófica, científica e técnica tem dificuldade em encontrar resposta
na ordem jurídica e institucional, no alcance de consensos mínimos.

Entre os conferencistas os teólogos Andrés Torres Queiruga, da
Universidade de Santiago de Compostela, Espanha; Manfredo de Oliveira,
da Universidade Federal do Ceará; Luiz Carlos Susin, da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul; e a teóloga Elisabeth
Schüssler Fiorenza, da Universidade de Harvard, EUA. Houve a
participação de teólogos e teólogas católicos e protestantes
brasileiros, de diferentes escolas teológicas e de diversas regiões do
país, debatendo temas que relacionam teologia e física, ciências
humanas, ciências da religião, cultura, resiliência e pastoral, e
bíblia e ecologia.

Queiruga articulou o binômio Fé e Ciência, lembrando momentos
históricos de diálogo e até de tensões, e propondo nova aproximação
para o mundo contemporâneo. O diálogo da teologia com a ciência é
fundamental num mundo que preza pela autonomia, reconhecendo-a como
vontade de Deus, sem deixar de resguardar a área específica de
intervenção da ciência. E introduziu alguns questionamentos em relação
à oração de petição. Após a conferência, ele respondeu às perguntas
dos mais de 300 ouvintes, que lotavam o auditório do Centro de
Pastoral Anchieta. Essa participação superou as expectativas dos
organizadores.

Elisabeth Schüssler Fiorenza proferiu a primeira palestra do dia com o
tema As Escrituras e o Império, e movimentou a platéia, abordando as
questões sobre feminismo e gênero. Nas palavras da autora: "feminismo
é a noção radical de que as mulheres são pessoas". Ela também elencou
elementos da linguagem do Império Romano e as diferenças religiosas
contidas nas Escrituras cristãs, fazendo uma relação com a
globalização e as relações de poder.

A autora ainda criticou a forma com que a religião se apropria da
Bíblia, afirmando que a Sagrada Escritura é utilizada para legitimar a
exclusão de homossexuais e de feministas, garantir o divino, dominar e
ameaçar. Ela assegurou que a civilização humana tem interesse numa
leitura plural e tolerante, e apontou alguns caminhos possíveis,
sugerindo explorar o conceito de sabedoria na Bíblia e a necessidade
de se comprometer com uma teo-ética no mundo atual. No cosmopolitismo
da sabedoria, a Bíblia deve ser a luta do conteúdo sobre a
interpretação. A atuação ministerial feminina é vista como convite a
todos à sabedoria, rompimento com a lógica imperial, a dominação e a
visão segura.

Manfredo de Oliveira discorreu sobre Teologia e Ciências, destacando
que o novo quadro é composto da ciência moderna e das tecnologias que
daí provêm. Estas devem ser parceiras de diálogo para a Teologia que,
segundo Rahner, tem diante de si o mundo e os seres humanos, sem
perder de vista que as "Ciências têm o direito de falar de coisas
particulares, mas são incompetentes para falar do universal. Já a
filosofia e a teologia labutam com o universal". E lembrou que, para
John McDowell, "não há fronteira exterior para além da fronteira
conceptual".

Frente a esse quadro, "acreditar não é embotar as perguntas, por isso
a fonte d dinamismo da teologia se situa na gênese do raciocínio
humano, segundo Clodovis Boff. Também não se deve esquecer que a
teologia é saber do Absoluto, não saber absoluto", citou Agenor
Brighente. A teologia deve se dar conta de que não tem o monopólio das
falas sobre Deus porque a verdade é aberta aos discursos humanos. Isso
deve fazê-la perder a pretensão de ser mais que humana, sem perder de
vista que busca a presença do absoluto no mundo e do mundo no absoluto
e que o Reino de Deus é sentido de todos os sentidos, e é garantido a
todos, até aos derrotados da história.

Luiz Carlos Susin lembrou que a importância da teologia vem da
reflexão de que a fé cria comunidade e a comunidade cria a fé. A
teologia é vista como educadora da razão, para que a fé seja razoável
e a razão tenha limites. A palavra theoria, etmologicamente, é uma
visão do conjunto, como a de Deus. Por outro lado, só a Igreja é
insuficiente como lugar para a Teologia. O diálogo ajuda a evitar a
diluição do humano, lembrando Lévinas: "o subjetivismo é um abismo que
jamais devolve os cadáveres que engole". Se as ciências integram as
culturas mais vastas nas sociedades mais vastas, são as sociedades que
se tornam os espaços teológicos.

No projeto de Bento XVI, o diálogo da teologia com a sociedade
pluralista tem dificuldades no campo da cultura, não volta às fontes
cristãs, enquanto o ateísmo recrudesce. Para a sociedade muçulmana,
dialogar com os cristãos é conversar com o espaço secular moderno e
iluminista (Regensburg), e o valor moderno da liberdade religiosa dos
indivíduos (batismo do mulçumano), incompreensível para quem a fé é
inseparável da cultura e da sociedade.

* Teólogo e jornalista
http://lattes.cnpq.br/5999603915184645