segunda-feira, junho 22, 2009

Sermão do Pr. Carlos César Novaes - DIRETRIZ EVANGÉLICA: Movimento cristão pela justiça

(1)
No sepultamento de Martinho Lutero, o luterano Filipe Melanchton citou cinco personagens da história do cristianismo que, em sua opinião, anunciaram o Evangelho com maior clareza: Isaías, Jesus Cristo, Paulo Apóstolo, Agostinho de Hipona e, como não podia deixar de ser, o reformador alemão. Dos profetas hebreus, Isaías é considerado, de fato, o pregador de espírito mais evangélico. Muito especialmente entre os capítulos 40-55, o chamado Dêutero-Isaías, que se dirige ao povo de Israel no exílio babilônico, nos anos 550-540 a.C., com uma mensagem de conforto, esperança e encorajamento. Em Isaías 40.9 lemos:

Você, que traz boas novas a Sião, suba num alto monte.
Você, que traz boas novas a Jerusalém,
erga a sua voz com fortes gritos, erga-a, não tenha medo;
diga às cidades de Judá: “Aqui está o seu Deus!”

O termo hebraico, traduzido aqui como boas-novas (que também aparece em 41.27 e 52.7), foi transposto para a língua grega, na Septuaginta, como evangelho.
A mensagem do Dêutero-Isaías (ou Segundo Isaías) para o povo cativo na Babilônia era uma notícia boa e alegre: “Aqui está o seu Deus”. O profeta queria proclamar às pessoas do seu tempo que, apesar da opressão e do sofrimento, o Senhor ainda conduzia a história e cuidava do seu rebanho (40.10-11).
Ou seja: acima do reino dos homens, repleto de injustiças e opressões, triunfa para sempre o reino de Deus. Por isso, o anunciador de boas novas proclama a paz, a salvação e a certeza de que, afinal, “o Senhor reina” (52.7).

(2)
Não sei ao certo qual é o nome do filme ou do diretor — se for correta a hipótese científica de que a memória humana começa a falhar quando chegamos aos 27 de idade, a minha já está em pleno processo de deterioração há 20 anos — mas recordo bem a cena: alguns soldados do exército aliado abrem o grande mapa sobre uma mesa improvisada no campo de batalha, em meio à escuridão da noite, a fim de planejar as próximas investidas, e depois de conferirem várias possibilidades de locomoção e percurso, um deles pede ao que segurava a lanterna: “Jogue mais luz neste lado do mapa, mais luz neste lado”.
Penso que esta é a melhor definição para o movimento Diretriz Evangélica. Organizado na década de 40 por líderes evangélicos (David Malta Nascimento, Hélcio da Silva Lessa, Lauro Bretones, Himaim Lacerda, Luiz Curvacho, entre outros) que desejavam anunciar as propostas do reino de Deus de maneira integral, o movimento fez uso de revistas, colunas em jornais, congressos e programas de rádio para iluminar um lado do mapa que permanecia sombreado: a ênfase social da pregação cristã.
Eles não se contrapunham à mensagem evangelística das igrejas da época. Queriam, no entanto, que ela fosse anunciada em sua inteireza, e não só no formato de um mero apelo conversionista. Defendiam que a mensagem do Evangelho precisava ser levada ao ser humano como um todo (alma, mente e corpo) e à sociedade em todas as suas dimensões (política, econômica e cultural). Enfim, os participantes do movimento atuavam para que a luz fosse lançada também sobre o outro lado do mapa.

(3)
Identificamos no movimento Diretriz Evangélica os principais elementos da pregação do Evangelho — do mesmo Evangelho que já existia antes dos evangelhos, na mensagem do Dêutero-Isaías.
Em primeiro lugar, um mensageiro que traga boas notícias. Não um profeta do desespero, a ameaçar o mundo com as pragas apocalípticas, ou um lamentador pessimista, choramingando as desgraças da vida, ao estilo da hiena Hardy Har-Har, do desenho de Hanna-Barbera.
O mensageiro das boas novas faz a denúncia e, ao lado dela, o anúncio. Mostra os descaminhos da injustiça e, em seguida, aponta o caminho da justiça. Revela as iniquidades e, também, o caminho da salvação. Fala acerca da condenação e, ao mesmo tempo, chama à conversão e ao arrependimento.
Em segundo lugar, as boas notícias são anunciadas com voz forte. Porque, normalmente, o mensageiro é uma voz que clama no deserto, como João Batista (Mateus 3.1-3).
O mensageiro das boas novas é um solitário. Não por falta de ouvidos: há ouvidos diversos. Mas por falta de ouvintes, pois os ouvidos são surdos.
É necessário que, além de subir a um alto monte, o mensageiro fale em voz alta, se quiser ser ouvido. E que se faça ouvir: como se fizeram ouvir três grandes profetas do século 20: Dietrich Bonhoeffer, na Alemanha nazista, Martin Luther King, na América racista, e Dom Hélder Câmara, no Brasil da ditadura.
Em terceiro lugar, a voz forte deve ser corajosa. Não tanto para enfrentar os inimigos de fora, mas especialmente para resistir aos inimigos de dentro.
Contra os defensores da mensagem integral do Evangelho, levantam-se os mesmos inimigos de sempre, e todos do lado de cá dos muros: a) os herdeiros do fundamentalismo, que só aceitam a pregação nos moldes do apelo conversionista e vivem a declarar que a igreja deve se preocupar apenas em salvar as almas perdidas; b) os propagadores da linha pentecostal e neopentecostal, que costumam alienar-se das preocupações sócio-políticas; c) os antiesquerdistas, que ainda entendem a ênfase social da pregação cristã como propaganda marxista/comunista; d) os politiqueiros, que possuem apenas projetos pessoais de poder e conseguem eleger-se graças a crentes desejosos de favoritismos imediatos.
O profeta é, no mais das vezes, incompreendido e, por causa disso, perseguido, como Micaías (1 Reis 22.1-28). Diferentemente do sacerdote, que ministrava os rituais do templo, o profeta seguia para o meio da praça e falava em nome de Deus ao povo, assumindo os riscos da sua postura.
Em quarto lugar, a coragem de anunciar o reino de Deus no âmbito do reino dos homens. Sim, coragem para dizer: “aqui está o seu Deus”. E para mostrar — de modo especial na realidade observada e vivida hoje no contexto evangélico — que mesmo a igreja pode se afastar dos propósitos do reino.
Allan Neely, numa conferência realizada no Seminário Batista do Sul, advertia que reino e igreja não estão totalmente separados, nem completamente identificados. Há momentos em que a igreja corresponde às expectativas do reino de Deus e períodos em que deles se afasta.
Certa vez, o pastor Hélcio Lessa, um dos líderes do movimento Diretriz Evangélica, sentou-se do meu lado, ao iniciar uma das nossas conversas, e detonou: "Estou procurando alguém que consiga me provar que quando Jesus Cristo pensou em igreja, havia pensado nisso tudo que anda por aí". Fiquei olhando para ele à espera do inevitável complemento jocoso, que não tardou: "E se alguém conseguir me provar que era isso mesmo que o Senhor Jesus queria, vou ter que começar a desconfiar do bom senso do Mestre".
E é bom lembrar que naquele tempo, lá por meados da década de 80, nem tínhamos essa explosão de igrejas neopentecostais, escândalos de pastores sendo acusados de fraudes fiscais, comunidades abertas em cubículos que se denominam sedes mundiais, programas de televisão anunciando curas e prodígios espetaculares, desfiles de pseudoartistas que se apresentam cantando essa música desprovida de qualquer beleza estética e qualificada de gospel, estranhas eclesiologias hierárquicas com seus bispos e apóstolos, e os apelos manipuladores que só pretendem extorquir os desavisados para sustentar projetos pessoais de poder e estrelismo.Numa aguda crítica ao cristianismo institucional, o compositor espanhol Javier Maroto fez uma canção chamada Siete Veces Crucificado.
Nela, Maroto se refere a um homem que, há dois mil anos, nasceu entre os pobres, pregava o amor e a justiça, andava com marginalizados e oprimidos, até ser acusado de traição e heresia. E Cristo foi assim crucificado pela primeira vez.
Depois, a igreja desse Cristo organizou o Santo Ofício e obrigou as pessoas a fazerem e pensarem tão só o que os bispos permitiam, condenando os desobedientes às fogueiras da Inquisição. E Cristo, assim, foi crucificado pela segunda vez.
Vieram, então, os espanhóis para a América, promovendo cruéis massacres das nações indígenas para roubar-lhes a terra e o ouro enquanto as catequizavam para impor a cultura européia. E Cristo, assim, foi crucificado pela terceira vez.Já no século XX, o papa João 23 convocou um concílio para modernizar a estrutura eclesiástica e torná-la mais próxima do povo. Mas os representantes da ala conservadora do clero sufocaram as iniciativas do Concílio Vaticano II e, assim, Cristo foi crucificado pela quarta vez.

Mais tarde, em Medellín, surgiu a Teologia da Libertação para demonstrar — com sua ênfase na justiça social — que não há pobres, há apenas empobrecidos. Novamente se levantaram as vozes conservadoras e perseguiram os defensores dos povos oprimidos. E Cristo foi crucificado pela quinta vez. Na cidade de Madri, continua Maroto, uma dinâmica paróquia acolhia os pobres e desamparados, mas acabou sendo fechada por ordem do Vaticano. Cristo, então, foi crucificado pela sexta vez. Hoje, enfim, o que faremos? — pergunta o compositor. Diante das injustiças e opressões modernas, crucificaremos pela sétima vez aquele que quis optar pelos perseguidos e abandonados?

Parece que os mensageiros do movimento Diretriz Evangélica cultivavam o mesmo objetivo: lembrar a igreja que, acima de tudo, seu grande objetivo no mundo é cumprir os propósitos do reino de Deus, e não construir o próprio reinado.

(4)
Acompanhamos, nos últimos dias, as tumultuadas eleições no Irã. Multidões de jovens, mulheres e trabalhadores iranianos estão saindo às ruas para denunciar supostas fraudes no processo eleitoral e pedir mais liberdade de expressão para os cidadãos. O jornalista Robert Fisk, num artigo reproduzido pelo jornal O Globo, menciona um estudante de engenharia química da Universidade de Teerã que participava dos protestos recitando os seguintes versos de um poeta iraniano moderno: “devemos seguir sob a chuva, devemos lavar nossos olhos, devemos ver o mundo de um jeito diferente.”
Para tanto subia o anunciador de boas novas ao monte. E, com o mesmo objetivo, reuniram-se, décadas atrás, os organizadores de Diretriz Evangélica. Para ajudar-nos a ver o mundo de um jeito diferente.

Carlos César Novaes, professor de História do Cristianismo, é pastor da Igreja Batista Barão da Taquara, Rio de Janeiro, RJ. (Sermão pregado no culto de celebração a Deus pelos 60 anos do Movimento Diretriz Evangélica / 90 anos do Pr. David Malta Nascimento, na capela do Seminário Batista do Sul, Rio de Janeiro, RJ, em 16/06/09).

Nenhum comentário: